Locomotivas com mais de 160 anos podem ter sido encontradas na Lapa

Frota pioneira da São Paulo Railway que foi construída entre 1861 e 1864 na Inglaterra pode ser um dos achados arqueológicos das obras de ampliação de avenida na região da Lapa. Segundo “lenda” ferroviária, uma das maiores e mais potentes locomotivas a vapor do Brasil estaria enterrada no local
Locomotivas encontradas teriam pelo menos 160 anos (Leandro Guidini)
Locomotivas encontradas teriam pelo menos 160 anos (Leandro Guidini)

Achados arqueológicos são encontrados com certa frequência em grandes obras pela cidade. Muitas vezes os rumores e lendas urbanas saem do campo do folclore para entrar na realidade. Foi o que aconteceu na região do Pátio Lapa nos últimos dias.

Durante as obras de construção da ponte Pirituba-Lapa, que faz parte da religação da Avenida Raimundo Pereira de Magalhães, foram encontrados restos de locomotivas a vapor.

Inicialmente, a descoberta foi recebida com surpresa por parte dos especialistas da história ferroviária. Mas uma análise mais detalhada pode indicar que o achado é de valor inestimável, pois podem se tratar das primeiras locomotivas a trafegar no estado de São Paulo.

Para compreender melhor a história, o site conversou com Leandro Guidini, pesquisador ferroviário, que esteve no local onde as locomotivas foram encontradas.

Leandro Guidini e Felipe Bragion no local onde foi encontrada a locomotiva (Leandro Guidini)
Leandro Guidini (esquerda) e Felipe Bragion (direita) no local onde foi encontrada a locomotiva

O local

As locomotivas foram encontradas em um aterro ao lado das vias da Linha 7-Rubi. Este trecho não é original e foi construído devido às obras de retificação do Rio Tietê nos anos 50. No local foram encontrados restos de locomotivas e tenders, além de sucata de ferro e escória.

“Após visita ao local, pudemos constatar que naquele pedaço existem os restos de duas locomotivas e três tenders. Não sabemos se as locomotivas estão com suas caldeiras, mas se estiverem, está enterrado mais abaixo. Uma delas está de ponta-cabeça e a outra virada para cima. Nitidamente, aquele material, que era inservível na época, foi levado até o lugar e empurrado barrando abaixo, onde caiu ficou, e foi soterrado com mais sucata e terra. Há bastante escória de fundição e pedaços de aço diversos.”

Segundo Guidini, quando houve a obra de retificação e a construção de aterro foram utilizadas locomotivas de época. A sucata de ferro que hoje é considerada um item cobiçado em leilões não tinha qualquer valor na época, até mesmo pelo fato de existirem poucas indústrias capazes de processar a sucata de ferro. Portanto, esses antigos trens eram descartados de qualquer forma, como neste caso servindo como volume para este aterro.

“Com a retificação da calha do Rio Tietê, na década de 1950, houve a necessidade de ampliação do aterro da via, obra muito cara em qualquer época. A sucata ferrosa não tinha o mesmo valor que tem hoje, seja pela falta de usinas com tecnologia para processar, ou seja pela falta de recursos da empresa para preparar a sucata para venda, de modo que a prática de utilizar sucatas para aterramento era muito comum”, explica Guidini.

“Então essas máquinas e toda a sucata que havia nas dependências das oficinas da Lapa foram utilizadas nisso. Temos que lembrar que a dinâmica do mundo era bem diferente 80 anos atrás, não havia qualquer preocupação ambiental ou mesmo histórica. Então, as locomotivas, depois de anos servindo ao seu propósito, tornaram-se obsoletas e foram descartadas da forma que melhor conviesse,“ conclui.

O trem

Inspeções preliminares apontam que as duas locomotivas encontradas tratam-se de modelos históricos e pioneiros no estado de São Paulo com praticamente 160 anos. Elas operaram pela São Paulo Railway (SPR) durante a fase de construção da ferrovia que liga Santos à Jundiaí.

Os trens são de origem inglesa fabricados pela “Sharp Stewart” antes mesmo da SPR iniciar suas operações em 1867.

“As locomotivas provavelmente se tratam de dois raríssimos exemplares de 2-4-0T, as primeiras locomotivas da SPR construídas pela Britânica ‘Sharp Stewart’ entre 1861 e 1864. Também no local há três tenders de dois eixos, muito provavelmente oriundos de outro tipo de locomotiva, desta vez as 4-4-0 também inglesas, de 1876.“

Locomotiva 2-4-0T da Sharp Stewart fabricada entre entre 1861 e 1864
Locomotiva 2-4-0T da Sharp Stewart fabricada entre entre 1861 e 1864

Se constatado que os achados são de fato deste modelo de locomotiva, podemos afirmar com segurança que este pode ser considerado uma das maiores descobertas ferroviárias dos últimos tempos no Brasil.

“Essas máquinas tem uma importância ímpar para a história ferroviária nacional. Foram elas que literalmente construíram a primeira ferrovia do Estado de São Paulo, e trabalharam toda sua vida durante o período áureo do café. Elas transportaram toda a riqueza de São Paulo, tornaram ele a ‘locomotiva do Brasil’, como é chamado”, celebra o historiador.

“Foram essas locomotivas que inauguraram a ferrovia, quem sabe até mesmo uma delas estava presente no trem inaugural que, curiosamente, descarrilhou antes de chegar ao banquete de inauguração armado na estação da Luz (a primitiva estação da luz, lembrando que esse prédio é o quarto edifício da estação). Esse descarrilhamento ceifou a vida do maquinista, e feriu diversos passageiros, incluindo o Governador do Estado na época (era chamado de Presidente da Província).“

Acidente com trem inaugural da SPR
Acidente com trem inaugural da SPR

Para os especialistas em história ferroviária era praticamente certo que esta locomotiva estava extinta. O surgimento deste modelo em meio a escavações pode inclusive confirmar a veracidade da antiga lenda.

“Independente desse triste fato, essas máquinas carregaram a SPR nas costas por longos anos, e tiveram sua aposentadoria decretada, após inúmeras modificações, ainda nos primeiros anos do século XX. Sendo assim, era de entendimento unânime que elas sequer existissem! Foi uma enorme surpresa constatar que tais locomotivas, mesmo em pedaços, ainda estejam ‘vivas’ mais de 160 anos depois de sua construção.“

Construção da São Paulo Railway na região de Campo Limpo Paulista
Construção da São Paulo Railway na região de Campo Limpo Paulista, locomotiva histórica atua nos serviços.

A lenda

Como já mencionado, durante a construção da nova ponte sobre o Rio Tietê foram utilizados diversos materiais inservíveis e locomotivas antigas. A especulação é de que uma das maiores e mais fortes locomotivas da SPR tenham tido o mesmo destino, as “Garratt”.

Essa espécie de super locomotiva tinha 27 metros de comprimento e pesava até 190 toneladas. Foram utilizadas em trens de carga e em trens expressos de passageiros.

Locomotiva "Garrat" (Reprodução/Revista Ferrovia)
Locomotiva “Garrat” (Reprodução/Revista Ferrovia)

A presença de locomotivas históricas pode indicar que essa grande máquina, originalmente citada na lenda, também esteja enterrada em algum local próximo a ponte da Lapa.

Segundo trecho do site EF Paulista, também produzido por Guidini, o engenheiro Moises Lavander, autor do livro Memória de uma Inglesa, confirmou relatos de que tais locomotivas estariam realmente enterradas nas encostas desta ponte.

Locomotiva Garrat da SPR (Reprodução Revista Ferrovia)
Locomotiva Garratt da SPR (Reprodução Revista Ferrovia)

“Segundo conversa com Moises Lavander, autor do supracitado livro, quando estava em processo de escrita há mais de 20 anos, entrevistou pessoas que confirmaram que essas Garrats estariam nas encostas da nova ponte, servindo como arrimo nos contrafortes. Quando ele soube da noticia dessas máquinas, também teve a certeza de não se tratar de uma lenda, e que é realmente possível que elas estejam lá.”

Importância da preservação

Encontrar uma locomotiva de 160 anos que pensava-se estar completamente relegada a história merece um cuidado especial que passa desde o processo de retirada do material, análise e sua eventual guarda.

As locomotivas a vapor sempre estão no imaginário popular por serem as precursoras do transporte sobre trilhos. Seja pelo som ou pela fumaça, as máquinas até hoje são um símbolo do transporte ferroviário.

Por detrás do romantismo típico das ferrovias antigas existe uma história que nem sempre é contada. O patrimônio industrial e a formação das primeiras ferrovias estão ligados intimamente com o desenvolvimento econômico do estado.

Locomotiva 2-4-0T em serviços em Paranapiacaba no século XIX
Locomotiva 2-4-0T em serviços em Paranapiacaba no século XIX

Esse mesmo desenvolvimento econômico foi o que possibilitou a construção das primeiras vilas próximas às estações ferroviárias. As pequenas paradas foram sementes para o que se tornaram grandes cidades. São Paulo cresceu em torno das ferrovias.

A velha locomotiva enferrujada encontrada sob o solo é a protagonista desse semear urbano de grande desenvolvimento. Podemos dizer que sim, temos uma manifestação física da protagonista dessa grande história e que merece, por seus serviços prestados, um espaço na eternidade.

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8 comments
  1. Bela reportagem , devíamos ter um um grande museu de maior importância , para guardar essas preciosidades, museus que existem mundo afora .

  2. As entidades preservacionistas da ABPF, da ANPF, entre outras, poderiam se envolver na prospecção arqueológica junto aos técnicos do IPHAN, Condephaat e Conpresp para preservar todos os itens das locomotivas históricas e fazer com que suas peças sejam expostas ao público onde essas entidades possuem seus museus e em algum espaço de Paranapiacaba, seria muito interessante poder visitar e ler os dados históricos sobre isso!

  3. “Na época não se tinha importância preservação histórica ou cuidado com o meio ambiente”.

    Pula para década de 2020 e o governo brasileiro afunda no meio do oceano o nosso único porta aviões.

    Não mudou muito, infelizmente.

    1. Um porta aviões que já veio todo sucata e não tem importância histórica nenhuma pro Brasil… Conta outra

  4. Excelente matéria! Uma bela aula de história!
    Tenho certeza de que este valioso material haverá de ser guardado, para uma futura restauração e preservação (que sabemos demandar tempo e dinheiro).
    Ironicamente, a situação é também simbólica para o que houve com o modal ferroviario no Brasil: Enterrado e esquecido por décadas – e ainda engatinhando pra se reerguer.

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